O Preço do Dinheiro Grátis

por: Peter Saunders*

Em Maio do ano passado, Madeleine McCann, de quatro anos, desapareceu de um apartamento em Portugal, onde a sua família passava férias. O seu desaparecimento dominou as notícias na Grã-Bretanha e em todo o mundo. Apesar de uma recompensa no valor de 2,5 milhões de libras que foi oferecida em troca do seu regresso sã e salva, nunca mais foi vista.

Mas a angústia de uma mãe tornou-se numa oportunidade para outra mãe.

Em Inglaterra, ao ver televisão durante o dia na sua habitação social em Dewsbury, Yorkshire, Karen Matthews, de 32 anos, começou a pensar naquela recompensa.Contactou Michael Donovan, o tio do seu actual companheiro, e expôs-lhe um plano para raptar a sua filha Shannon, de nove anos, e escondê-la em casa de Donovan. Após algumas semanas, quando uma recompensa fosse oferecida, Donovan afirmaria ter encontrado Shannon e os dois conspiradores dividiriam então o dinheiro.

Em Fevereiro deste ano, Matthews pôs o plano em acção e deu Shannon como desaparecida. Com 300 polícias à procura da filha, apareceu perante as câmaras de televisão com lágrimas nos olhos, apelando para o regresso de Shannon, sã e salva.

Cerca de três semanas mais tarde, a polícia descobriu Shannon em casa de Donovan. Tinha sido drogada e acorrentada. Esta semana, Matthews e Donovan foram considerados culpados do seu rapto.

A maioria das pessoas na Grã-Bretanha fica estupefacta por uma mãe ser capaz de submeter a filha a uma provação destas, na mira de ganhar dinheiro. Mas este caso trata de algo mais para além da cruel indiferença de uma mulher relativamente à sua filha.

Conforme foram surgindo pormenores sobre o estilo de vida desta família, o cidadão comum inglês tem sido confrontado com provas evidentes da forma como o Estado Providência permitiu que uma cultura destrutiva de baixo nível se estabelecesse e desenvolvesse. A única boa notícia é que finalmente o Governo parece disposto a lidar com o problema, reformando de forma radical o modo como funciona o sistema de segurança social.

Matthews nunca trabalhou um único dia em toda a sua vida. Tem dependido do Governo para lhe fornecer habitação e um rendimento de 287 libras (322 euros) todas as semanas. Nunca se casou. Teve sete filhos, de cinco ou seis pais diferentes (ela não tem a certeza de quantos). Três dessas crianças vivem com os pais. As outras quatro viviam com Matthews e com o seu companheiro mais recente, que tem 22 anos e aguarda julgamento por acusação relacionada com pornografia infantil. Pensava que era o pai do filho mais novo de Matthews, mas testes de ADN demonstraram que não era. As quatro crianças que viviam com eles estavam gravemente negligenciadas e violentadas. O estado fornecia o pequeno almoço na escola para as crianças mais velhas. O jantar poderia ser um saco de chupa-chupas.

Uma boa parte do dinheiro dos contribuintes que supostamente era aplicado a cuidar destas crianças, era gasto em cigarros (60 por dia) e álcool. A Shannon era regularmente drogada com antidepressivos, analgésicos e comprimidos para o enjôo, por forma a mantê-la sossegada, especialmente durante as férias escolares.

O público britânico está gradualmente a tomar consciência do facto de esta cena Hogarthiana de deboche, irresponsabilidade egoísta e negligência grosseira não ser excepção.

A oposição Conservadora começou a descrever a Grã-Bretanha como uma “sociedade desfeita”, embora o cerne do problema esteja concentrado na parte inferior da estrutura social, onde as classes médias raramente vão. Esta é a área onde o colapso da família teve o seu impacto mais devastador e a influência corrompedora da segurança social incondicional é mais sentida.

Quase um quinto dos lares britânicos vive em habitação social. Alguns dos maiores bairros sociais do país transformaram-se em guetos da segurança social onde quase ninguém trabalha.

São sítios sem alma, deprimentes, onde as pessoas vivem vidas sem objectivo, em silencioso (e por vezes não tão silencioso) desespero. O crime, a violência e as drogas são lugares comuns.

Muitos dos residentes destes bairros são pais solteiros que, tal como Matthews, se qualificaram para receber uma casa e um rendimento por terem filhos. Outros estão desempregados ou afirmam estar incapacitados para o trabalho.

O número de pais solteiros que recebem apoio social cresceu exponencialmente nos últimos 40 anos. Manos de um quarto dos pais solteiros (e menos de 10 por cento daqueles que têm filhos com menos de 5 anos) têm emprego a tempo inteiro. Os restantes dependem de subsídios do governo para a totalidade ou a maior parte do seu rendimento, pois sem pelo menos um trabalhador a tempo inteiro, nenhum lar pode ser auto-suficiente.

Também se tem assistido a um aumento constante do número de cidadãos ingleses em idade de trabalhar, que afirmam ser doentes crónicos ou deficientes. O número de pessoas que dependem da segurança social na Grã-Bretanha atinge o número avassalador de cinco milhões, e metade delas recebem pensões por incapacidade.

Esta semana, o Governo publicou um livro branco que promete uma revolução na segurança social. Algumas destas propostas ecoam o que John Howard conseguiu fazer na Austrália, mas outras vão muito mais longe. Até agora, os pais solteiros na Grã-Bretanha têm tido direito a ficar em casa e receber abonos até os seu filho mais novo atingir a idade de deixar a escola. O mesmo se passava na Austrália até Howard ter alterado as regras em 2006. Agora o governo britânico segue os passos da Austrália, ao requerer que os pais solteiros procurem trabalho assim que o filho atinja os sete anos. Aqueles que não encontrarem empregos, mudam para subsídio de desemprego.

Mas o livro branco dá mais dois passos que Howard nunca tentou.

Em primeiro lugar, propõe que os pais solteiros dependentes da segurança social progridam para o trabalho após o primeiro aniversário do seu filho mais novo.

Não é claro o que significa, exactamente, progredir para o trabalho. Pode envolver programas de formação ou de experiência profissional. Pode significar apenas actualizar o seu curriculum vitae.

Mas signifique o que significar, aqueles que se recusam a fazer qualquer coisa arriscam-se a perder os seus subsídios. Apenas os pais solteiros com filhos menores de um ano não serão afectados pelos novos requisitos.

Em segundo lugar, o livro branco também se propõe reduzir o crescente número de pessoas que alegam incapacidade. Este tem sido um problema para todos os países ocidentais nos últimos 20 anos e poucos foram os que conseguiram algum progresso nesta área.

Mas a Grã-Bretanha irá reavaliar todos os incapacitados, com o objectivo de reduzir o seu número em 40 por cento. Tal como no caso dos pais solteiros, todos, com excepção dos beneficiários com deficiência grave, serão reclassificados para progredir para o trabalho. Isto poderia implicar ter de fazer formação profissional ou preencher postos de trabalho para continuar a receber subsídios.

Irão estas reformas funcionar?

Uma das razões para cepticismo é que já passámos por isto antes.

Quando o Partido Trabalhista atingiu o poder em 1997, Tony Blair prometeu reformar a segurança social, mas com as bases do partido em revolta e com pessoas em cadeiras de rodas a protestar à porta da Câmara dos Comuns, tudo se tornou demasiado difícil e muito pouco foi feito.

A mesma coisa poderia voltar a acontecer. Muitos deputados do Partido Trabalhista sentem-se inseguros relativamente a estas propostas, e o lóbi da segurança social poderia voltar a causar distúrbios. Provavelmente é mais fácil para um governo Trabalhista introduzir este tipo de reformas do que para os Conservadores, mas o jovem e dinâmico Ministro do Trabalho e das Pensões, James Purnell, vai ter o seu trabalho dificultado para fazer passar estas propostas.

Mesmo que tenha sucesso, existe o perigo óbvio de ‘progredir para o trabalho’ ser interpretado de forma muito lata, e nesse caso as reformas pouco irão conseguir fazer. Existe ainda o problema de como aplicar sanções financeiras a pais solteiros que se recusem a cumprir as novas condições de actividade.

O Governo diz que irá reter esses pagamentos, mas quando há crianças envolvidas, é mais fácil falar do que fazer.

A experiência da Austrália neste caso é instrutiva. Quando Howard decidiu penalizar os pais inactivos, reduzindo os seus benefícios, acabou por ter de os compensar para assegurar que os seus filhos não iriam sofrer. O dinheiro que havia sido retirado com uma mão acabou por ser devolvido pela outra.

Finalmente, existe a questão de saber que tipo de trabalhos as pessoas expulsas da segurança social poderiam executar.

Um dos motivos pelos quais o número de deficientes cresceu em todos os países ocidentais deve-se ao facto de a procura por mão-de-obra não qualificada ter decaído, em resultado do progresso tecnológico e da globalização. Em vez de aumentar o número de desempregados, muitas pessoas sem qualificações e sem emprego foram redefinidas como incapacitadas.

Que tipo de trabalho irão estas pessoas sem qualificações, “incapacitadas”, executar se agora tiverem de abandonar os subsídios? A requalificação profissional poderá ajudar a conseguir alguns empregos, mas a formação raramente tem efeito em pessoas com poucas habilitações que viveram de subsídios durante um longo período de tempo.

Parece provável que muitos sejam empurrados através de esquemas de formação inúteis, que os prepararão para empregos não existentes, ou inadequados.

O tempo para reformar a segurança social foi durante os últimos 10 anos, quando a economia estava forte. Com uma grave recessão à porta, vai ser muito mais difícil movimentar pessoas dos subsídios para o trabalho, e os números de beneficiários vão provavelmente subir em vez de descer.

As propostas de reforma da segurança social que foram apresentadas esta semana poderão vir tarde de mais.

No entanto, tem de valer a pena tentar, pois algo necessita urgentemente de ser feito para parar o crescimento da classe baixa dependente de subsídios sociais. Se estas reformas mais recentes falharem, nos próximos anos os ingleses podem esperar ver nas capas dos seus jornais muitas mais faces indiferentes, endurecidas como a de Matthews, olhando para eles.

* Peter Saunders é um distinto membro do Centro para Estudos Independentes e vive presentemente em Inglaterra

Tradução de ASTRO

Publicado no "The Australian", 13 de Dezembro de 2008

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